Avaliações dos riscos mantenedores do consumo de crack

Fatores de proteção e de risco

Fatores de risco são situações  ou comportamentos que aumentam a possibilidade de resultados negativos para a saúde, o bem-estar e o desempenho social – e, no caso desta obra, para o sucesso do tratamento para dependentes químicos.

Já os fatores de proteção são todos aqueles capazes de promover um crescimento saudável e evitar riscos de dependência e de acirramento de problemas sociais.


Os fatores de proteção e risco existem em diferentes campos da vida. No nível individual, manifestam-se por meio das disposições biológicas e psicológicas, das atitudes, dos valores, dos conhecimentos, das habilidades e dos problemas de comportamento de cada um.

No campo familiar, pelas normas de funcionamento e gerenciamento da vida em família, bem como pelos vínculos de apego entre seus membros.

Entre os amigos, os fatores de proteção e risco se estruturam a partir das normas de convívio, da natureza das atividades realizadas em grupo e dos tipos de vínculos instituídos.

Na escola, a mesma estruturação se dá a partir do clima entre os estudantes e entre estes e a instituição de ensino, da políticas de relacionamento , do acolhimento e da expectativa da escola em relação aos alunos.

Por fim, na comunidade, os pontos fortes e as vulnerabilidades se organizam a partir da clareza, da objetividade e da maleabilidade com que se concebem e aplicam as normas e as políticas sociais.

Todos esses aspectos devem ser investigados em busca de vulnerabilidades e potencialidades e potencialidades, visando o melhor planejamento e o sucesso das ações preventivas e terapêuticas.

Traumas durante a infância e consumo de substâncias psicoativas

Algumas situações traumáticas que ocorrem durante a infância e a adolescência, especialmente quando acontecem de maneira crônica, tais como negligência e maus-tratos por parte dos cuidadores, abuso sexual, violência dentro e fora do âmbito familiar e marginalidade, podem continuar a compremeter a adaptação e a estrutura psíquica dos indivíduos muito tempo após terem cessado e aprendendo a lidar com a raiva.

Dessa forma, a exposição precoce ao trauma é bem conhecida por aumentar significativamente o risco para uma série de transtornos psiquiátricos na vida adulta, entre eles a dependência química.

O abuso durante a infância a infância pode contribuir  para o aparecimento de crenças e pensamentos disfuncionais, bem comum o consumo de álcool e drogas para aliviar tais sintomas de desconforto.

Fatores de Risco

Indivíduo

  • Predisposição genética
  • Baixa autoestima, senso de desesperança em relação à vida 
  • Percepção de que amigos aprovam o uso de drogas
  • Problemas com a vinculação social, rebeldia, personalidade desafiadora e resistente à autoridade.
  • Padrão de comportamento sensation seeking, curiosidade, problemas no controle dos impulsos.
  • Habilidades deficitárias para lidar com as situações

Amigos

  • Usuários de substâncias psicoativas e/ou adeptos de comportamentos desviantes.
  • Atitudes favoráveis ao uso de drogas

Família

  • Ambiente doméstico caótico e conflituoso.
  • Apego inseguro e mau relacionamento entre os membros.
  • Consumo ou atitudes favoráveis ao uso de substâncias por parte dos pais ou outros membros.
  • Cuidados providos de modo irregular e pouco apoiador, ausência de monitoramento.
  • Expectativas altas e irrealistas entre os membros

Escola

  • Fracasso acadêmico
  • Baixo envolvimento e ajustamento escolar
  • Rejeitção por colegas/bullying
  • Expectativas irrealistas e falta de apoio institucional.

Comunidade

  • Disponibilidade, incentivo ao consumo e ausência de políticas e controle para substâncias lícitas (álcool, tabaco)
  • Violência, pobreza e ausência de suporte social.
  • Desorganização social e ausência do estado

Fatores de Proteção

  • Crenças, valores morais e religiosidade
  • Orientação voltada para a saúde e percepção dos riscos do uso de drogas.
  • Percepção dos controles e sanções sociais, intolerância com comportamentos desviantes e bom relacionamento com os adultos.
  • Habilidades sociais assertivas e competentes, tais como empatia, pragmatismo e bom controle interno.
  • Adeptos de modelos convencionais de comportamento e normas sociais.
  • Intolerantes com condutas desviantes.
  • Ambiente familiar apoiador, harmônico, estável e seguro, com regras claras de conduta e envolvimento dos pais na vida dos filhos
  • Vínculos e relações de apego fortes, seguras e estáveis.
  • Normas e valores morais sólidos
  • Políticas de integração entre os alunos e monitoramento do desempenho escolar.
  • Normas que desencorajem a violência e o uso de substâncias psicoativas.
  • Clima positivo, voltado para o estabelecimento de vínculos.
  • Acesso a serviços de saúde e bem-estar social
  • Segurança, organização e normas comunitárias contra a violência e o uso de drogas.
  • Atividades de lazer, vínculos comunitários e práticas religiosas.
  • Identidade cultural e orgulho étnico

Componentes capazes de influenciar o processo de recuperação

  1. Situações estressantes – pregressas e vigentes.
  2. Cultura do consumo e a sua importância para o paciente.
  3. Experiência do consumo de substância – expectativa e estilos de consumo.
  4. Qualidade dos relacionamentos.
  5. Habilidades e competências do paciente
  6. Recursos pessoais, familiares e sociais

Assim tais individuos tem problemas mais graves com o uso de drogas, começam a consumi-las mais cedo, têm taxas de tentativa de suicídio mais elevadas, maior prevalência de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e transtorno de boderline e problemas de relacionamento que os tornam hesitantes para buscar ou aceitar ajuda profissional, sendo mais vulneráveis ao sinais de recaída.

A maioria dos indivíduos que procuram tratamento especializado para dependência química tem antecedente de algum tipo de trauma infantil.

Em um estudo realizado com mulheres usuárias de drogas injetavéis no Estados Unidos, o abuso sexual na infância, com ou sem penetração, principalmente o realizado por um membro da família, esteve associado de modo significativo como consumo de drogas na idade adulta.

A associação entre o abuso sexual na infância e a presençaa de depressão maior aumenta ainda mais o risco de consumo de crack por mulheres adultas.

Outro estudo com usárias de crack nor-americanas constatou que aquela que haviam sofrido violência sexual durante a infância apresentavam padrões mais acentuados de isolamento social.

Desse modo, a investigação dos eventos traumáticos durante a infância e a adolescência deve fazer parte da avaliação dos fatores de proteção e risco, recebendo a atenção e os encaminhamentos necessários por parte da equipe profissional.

Esse tipo de abordagem, no entanto, requer um conhecimento mínimo por parte do entrevistador acerca dos processos e das dinâmicas envolvidos nesse tipo de comportamento.
Além disso, o assunto deve ser abordado com tato e sensibilidade, respeitando a disposição do paciente para falar sobre o assunto.

Segundo o Substance Abuse  and Mental Health Services Administration, aqueles que foram vítimas de traumas durante a infância encaram sua experiências de abuso respeitando três estágios, cujo término pode levar anos: no primeiro (0 a 30 dias), o assunto é tratado com reserva e por isso raramente abordado pelo paciente, cabendo ao profissional observar sinais e sintomas sugestivos.

Enquanto o tratamento para a dependência  química se inicia, toda tentativa de aprofundar esses temas nessa fase poderá parecer inapropriada e contraproducente.

No segundo estágio (30 dias a 2 anos), o paciente já pode ter a capacidade e a confiança no vínculo terapêutico para abordar o assunto; no terceiro (2 anos ou mais), o paciente talvez já tenha a capacidade não só de abordar, mas de lidar com uma série de assuntos relacionados ao tema.

O comportamento de abuso é frequentemente intergeracional, ou seja, muitas vezes aquele que sofre abuso  é filho de pais que passaram por essa experiência.

Isso pode despertar sentimentos antagônicos no profissional da saúde pouco habituado com esses pacientes, especialmente aqueles que se propõem a abordar essa questão de modo polarizado. “com muito amor” ou “com muita disciplina”.

Desse modo, avaliar e tratar o paciente vítima de abuso na infância é quase sempre uma tarefa complexa, que deve ser preferencialmente iniciada por uma equipe multidisciplinar, valendo-se de técnicas de abordagem específicas e adequadas para cada momento do paciente.

O tratamento medicamentoso é benéfico para boa parte desses pacientes, mas requer algum conhecimento por parte do psiquiatra.

Ao especialista em dependência química caberá uma avaliação inicial do problema , o acolhimento inicial e a reafirmação de que o paciente não está sozinho, pois há recursos médicos e psicossociais capazes de ajudá-lo, seguida de um encaminhamento para o tratamento dessa questão específica, sem, no entanto, abandoná-lo no tratamento da dependência química.

Esse assunto também será abordado e ampliado no capítulo deste livro sobre transtorno de personalidade bordeline.

Cultura do consumo de substâncias psicoativas

Afirmações como “louco conhece louco”, “chego numa festa e logo sei quem usa” ou ” acho droga pra comprar não importa onde eu esteja” são rotineiras no ambientes de tratamento e revelam que os usuários de substâncias compartilham códigos culturais relacionados ao modo como consomem sua droga de preferência.

Paulatinamente, a cultura do consumo  passa a influenciar seus gostos e modos de comportamento, tornando-se parte integrante de seu estilo de vida.
Não se trata apenas da substância, mas do contexto em que ela é consumida – o manejo correto da parafernália, as dicas para melhor aproveitar os efeitos desejados e evitar os adversos, tudo isso aumenta o engajamento do usuário na cultura do consumo.

Quanto mais imerso na cultura de consumo e desconectado de seus costumes e valores anteriores, mais difícil será a recuperação do paciente.
As culturas de consumo são redes sociais informais, dotadas de um grupo de normas, as quais promovem e regem um modo de consumo de substância.

A cultura se transforma em uma força mantenedora do consumo.

Muitos dependentes acham mais fácil romper o elo fisiológico do que o elo cultural que os une ao consumo de substância psicoativas – valores, artefatos, ambientes, rituais de consumo, relacionamentos, símbolos, música, etc.

A cultura oferece ao usuário um ambiente no qual seu estilo de vida não é taxado como ” diferente dos outros”, e tampouco é alvo de estigmas. Ela possibilita que o recém-iniciado aprenda a manejar os instrumentos de uso, a encontrar canais de acesso, a evitar complicações físicas e a driblar a proibição e os controles sociais vigentes.

Além disso, oferece também uma ideologia que justifica seu comportamento, formas específicas de comunicação e rituais e relacionamentos pessoais coesos, visando a viabilidade do uso.

No entanto, alguns hábitos culturalmente disseminados entre os usuários, instituídos com o intuito de protegê-los contra situações de risco decorrentes de efeitos adversos ou do ambiente de marginalidade e ilicitude em torno do consumo – por exemplo, o uso de álcool como ansiolítico por usuários de crack -, acabam por expor os pacientes a riscos ainda maiores, principalmente em longo prazo.

Dessa forma, o conhecimento da cultura de consumo do paciente promove uma avaliação mais apurada dos fatores de risco envolvidos em seu ambiente, possibilitando a instituição de ações preventivas.

O interesse do profissional da saúde pelo estilo de vida usuário do paciente pode aumentar a empatia entre ambos, deixando este confiante e mais aberto para as propostas do tratamento.

Além disso, a investigação do envolvimento do paciente na cultura do consumo em detrimento de sua cultura anterior fornece ao profissional da saúde mais uma ferramenta para avaliar a gravidade do consumo do crack.

Por fim, pela observação do abandono dos símbolos, hábitos e comportamentos relacionados à cultura do consumo é possível monitorar o processo de tratamento, conforme o usuário caminha para um estilo de vida voltado para a abstinência.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima